Esculápio

Esculápio
Esculápio. Deus da Medicina, filho de Apolo e da mortal Coronis.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Dentes ou piano ?


Soul, R&B, Gospel, Jazz, Blues ou Rock ‘n’ roll: nenhum estilo em particular era escolhido ou deixado de parte. Inspirado inicialmente por Nat King Cole e Charles Brown, Ray Charles tornou-se numa lenda da música, cuja habilidade para composições e arranjos vinha diretamente da sua cabeça, onde conseguia ouvir a música primeiro e, em seguida, transmiti-la com o coração. Quem consegue ficar indiferente a melodias como Georgia on My Mind, I Got a Woman ou Mess Around?

Quando Ray Charles é lembrado, chega de imediato a sua imagem de homem de pele negra, sentado à beira do piano, de óculos escuros (que se habituou a usar desde jovem em virtude de ser cego) e com um largo sorriso branco. Acontece, porém, que nem todos os dentes de Ray Charles eram naturais. A evidência é clara na capa do seu CD Genius Loves Company, onde é facilmente detetado um gancho de uma prótese esquelética no seu dente canino superior do lado esquerdo. E que elogios merece este trabalho protético. Numa época ainda distante dos conhecimentos de hoje, não só a componente estética está natural, como a fonação não se encontra influenciada, factor especialmente importante neste caso por se tratar de um músico com exposição pública à escala mundial.

Foi ainda enquanto estudante universitário, com o livro Fundamentos de Dentística Operatória, de José Mondelli, que aprendi sobre a importância de não estar constantemente a conversar com os doentes a olhar para os seus dentes, pois estes estão sobretudo a tentar observar os nossos olhos. Foi por isso que me penitenciei, quando, ao observar a imagem de Ray Charles, identifiquei primeiro o gancho indicativo de uma prótese esquelética junto ao seu dente canino… e só depois é que notei na maravilhosa imagem do piano reflectido nos seus óculos.

Publicado na Revista O Jornal Dentistry. Dezembro 2013

http://www.jornaldentistry.pt/e_mag/




sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Os molares d' El Rey


A saúde dos reis sempre constituiu um fenómeno de grande impacto social e de interesse público e diplomático. Em todos os tempos, a medicina prestou especial atenção às principais figuras do reino. Perante qualquer fenómeno de doença ou de curiosidade eram convocados os médicos mais conceituados para acudir o Monarca. Naturalmente, assim acontecia também com os maxilares e os dentes de Suas Altezas Reais. No Egito, sobram poucas dúvidas aos estudiosos de que terá sido uma cárie no maxilar superior que causou a morte, por infecção disseminada, ao faraó Ramsés II. Em França, asseguram os documentos oficiais que Luís XIV, o Rei Sol, terá nascido no dia 5 de Setembro de 1638 já com dois dentes visíveis nas gengivas, garantindo-se o mesmo sobre o Imperador Napoleão Bonaparte e o Rei Ricardo III de Inglaterra.

Nos registos médicos da Real Câmara portuguesa existem duas referências em particular que merecem ser partilhadas e que, devidamente comparadas, demonstram, pelo espaço temporal entre os dois períodos régios, a evolução científica que a medicina portuguesa, em conjunto com as outras sociedades europeias, foi adquirindo e que já dispunha no início do século XX.

O primeiro trata-se de um registo, à luz de hoje, bizarro e pitoresco, em que o “concílio dos sábios” determinou que um ossículo ensanguentado, expelido através da narina de Sua Majestade D. Pedro II (Reinado: 1683-1706), se tratava de um resíduo fragmentário de uma perna de tordo ingerida três semanas antes e que não tinha qualquer relação com a volumosa lesão escavada no palato, com fístula e erosão, provável manifestação oral de doença sexualmente transmissível, a mais suspeita causa de morte do Rei.

Em contraste, dois séculos mais tarde, em Janeiro de 1906, o Dr. Tomás de Mello Breyner, escrevia no seu diário aquela que é talvez a primeira descrição sobre a relação entre diabetes mellitus e doença periodontal, a propósito da situação clínica do Rei D. Carlos I (Reinado: 1889-1908): “Fui ao Paço das Necessidades procurar a rainha para lhe dizer que El-Rei é um diabético. Com 22,560 g de açúcar por litro. (...) Bem desconfiava eu quando há menos de um mês lhe caíram uns dentes molares.” 

Publicado na revista Dentistry, Dezembro 2013: