A convite do Dr.
João Curto, irei hoje fazer, em Aveiro, uma intervenção no Congresso da
Associação Nacional de Adictologia sobre o trabalho sobre Medicina Oral e Dependências que desenvolvi, durante dois anos, na
Comissão para a Dissuasão da Toxicodependência de Lisboa, em colaboração com a
Faculdade de Medicina Dentária da Universidade de Lisboa e outras instituições.
O texto seguinte,
preparado aquando da minha participação, em Julho deste ano, no programa de
rádio Causas Públicas da Antena 1,
por solicitação do Dr. Luís Patrício, médico psiquiatra e da jornalista
Filomena Crespo, reflete alguma da
componente teórica que irei abordar na comunicação e cuja importante informação
julgo merecedora de ser partilhada com todos.
Os dentes da droga
A “destruição” do
corpo estigmatiza e desqualifica a aceitação social dos consumidores de substâncias
psicoativas. Como é que os
jovens vivem o estigma corporal e em que medida os investimentos na saúde oral
poderão contribuir para uma viragem nas suas trajetórias de vida? Na
atualidade, esta é uma problemática que se reúne de especial interesse, uma vez
que se vive cada vez mais numa sociedade de valores hedonistas e somatófilos, onde a
imagem é determinante na construção e reconstrução das identidades.
De facto, sendo a
cavidade oral uma das principais “portas de entrada”, é
comum encontrar-se, nos
consumidores regulares de substâncias psicoativas, um conjunto de manifestações
oro faciais específicas. Estas podem desenvolver-se em patologias graves, que devem ser tratadas ou,
primariamente, prevenidas,
visto que a presença destas em estado avançado, ao afectar significativamente as funções
básicas de mastigação, fonação e estética, pode originar impactos negativos nas tarefas quotidianas,
na integração social e no bem estar dos que são afetados.
A saúde oral está sujeita a um número
significativo de fatores de risco. Entre eles, evidenciam-se o alto consumo de
hidratos de carbono, a má nutrição, a falta de cuidados básicos de higiene e o
consumo de álcool e de tabaco. Estes são os principais causadores das doenças
orais mais conhecidas, tais como a cárie, a doença periodontal e o cancro. No
entanto, existem ainda outras entidades nosológicas características de
determinados hábitos e consumos ou de algumas doenças sistémicas. De seguida,
descrevem-se as principais manifestações oro faciais passíveis de serem
clinicamente identificadas em consumidores regulares de substâncias
psicoativas.
a)
Etanol e nicotina
Os achados clínicos mais expectáveis em
doentes alcoólicos, incluem cáries e doenças gengivais/periodontais em estado
avançado, simultâneas com uma higiene oral negligente.
São ainda esperadas outras manifestações
clínicas, tais como queilites angulares e labiais, candidíases, petéquias,
equimoses, halitose e odor a álcool, sangramento excessivo, bruxismo, atrição,
aumento do volume da glândula parótida, glossite e cancro oral. Acerca deste
último, é também relevante a contaminação pelo Vírus do Papiloma Humano (HPV),
comum em jovens com comportamentos sexuais de risco, e, no caso do carcinoma do
lábio a exposição ao sol.
Importa
lembrar também que a grande maioria de doentes que necessita de transplante
hepático é alcoólica ou ex-toxicodependente. A hepatite C é a principal causa
de transplante hepático e nestes doentes também é comum a prevalência de
doenças orais, tais como síndrome de SjÖgren,
cancro oral e líquen plano.
O uso
excessivo de álcool é, frequentemente, associado aos fumadores pesados, o que
constitui um dos fatores de risco major
para a doença periodontal. Os restantes
efeitos orais do tabaco são múltiplos: carcinoma de células escamosas,
carcinoma verrucoso, leucoplasias, estomatite nicotínica, melanoma do fumador,
língua despapilada, entre outros. O envelhecimento precoce da pele, pigmentação
dentária, halitose e a diminuição das sensações de paladar e olfato também são
comuns, bem como a falha na osteointegração de implantes, o risco de alveolites
e a cicatrização retardada.
b)
Tetrahidrocanabinol (cannabis)
O consumo crónico de cannabis pode originar tosse, bronquite crónica, obstrução das vias
aéreas e, ao nível dos olhos, as pupilas são, normalmente, pouco reativas. Xerostomia
(sintoma de falta de saliva), lábios e garganta com um aspeto seco, assim como
sinusite, faringite e laringite são igualmente prevalentes. É também comum a
presença de um odor característico na respiração e nas roupas e refere-se ainda que, nestes indivíduos, existe
alguma negligência em relação a hábitos higiénicos e que a dieta é composta por
altos consumos de hidratos de carbono, logo má higiene oral, cáries dentárias e
doenças gengivais estão frequentemente associadas.
c)
Cocaína
No consumidor de cocaína snifada é comum encontrarem-se erupções
cutâneas em torno da área do nariz e, em casos avançados, perfuração do septo
nasal e do palato. Geralmente, esta última ocorre alguns meses após a perfuração do septo nasal, ficando o
discurso com um som nasalado e os atos de falar, comer ou beber dificultados
pelo refluxo oro nasal.
São ainda frequentes lesões na gengiva da
região anterior do maxilar superior. Normalmente, representam-se por finas películas
brancas que saem facilmente com uma compressa deixando um fundo ulcerado, que é
vermelho e doloroso. Com abstinência, estas lesões desaparecem, espontaneamente,
ao fim de 2 semanas a 18 meses, pelo que este método é uma excelente forma
clínica de determinar a continuidade ou não destes consumos.
O consumo de cocaína na forma de crack provoca, geralmente, rouquidão e
deixa os lábios, a língua e a garganta com um aspeto muito seco.
A cocaína provoca ainda erosão dentária
devido à descida do pH da cavidade oral, em resultado do pó da substância ficar
dissolvido na saliva. A elevada prevalência de cáries dentárias ocorre pelo
mesmo motivo, acrescido do aumento da concentração de glicose (“açúcar”)
quando este é utilizado para “cortar” a cocaína pura.
d)
Derivados do ópio – Heroína
As lesões cutâneas costumam ser denunciadoras
de abuso de drogas por via parentérica. Estas podem ser encontradas em todas as
localizações da cabeça e pescoço e incluem abcessos subcutâneos, celulites,
tromboflebites, inflamações crónicas de múltiplas injeções e lesões infetadas. A
presença de mucosas edemaciadas e linfadenopatias também é recorrente.
Na observação intraoral é usual o diagnóstico
de doença periodontal em estado avançado, com perdas ósseas significativas,
mobilidade dentária e depósitos de cálculo sobre as superfícies dentárias
remanescentes. Xerostomia e “cáries de heroína”, caracterizadas por serem múltiplas e
normalmente localizadas na região cervical do dente (junto à gengiva) e de
tonalidade muito escura, são achados clínicos típicos.
Neste tipo de doentes é igualmente
importante despistar algumas manifestações orais comuns ao Vírus da Imunodeficiência
Humana (VIH/SIDA). Neste domínio, tanto pode ocorrer a identificação de
patologias em doentes previamente diagnosticados, como determinadas lesões
orais serem indicativas de que o doente pode ser portador do vírus. Assim,
todas as lesões encontradas devem ser bem identificadas e diagnosticadas. As
linfadenopatias em localizações cervicais e submandibulares são,
frequentemente, manifestações iniciais em doentes infectados com VIH. Esta
condição é persistente e pode ser encontrada na ausência de outra infecção ou
medicação capaz de causar aumento do tamanho dos nódulos linfáticos. Nestes
casos, os nódulos linfáticos tendem a ser maiores que 1 cm em diâmetro e podem
ser identificados em múltiplos locais. Outros achados clínicos que podem
sugerir um risco aumentado para a SIDA incluem candidíase da mucosa oral,
lesões roxo-azuladas ou vermelhas que, após biopsia, são identificadas como
Sarcoma de Kaposi, linfoma não-Hodgkin ou leucoplasia pilosa dos bordos
laterais da língua, associada ao vírus Epstein-Barr. Outras lesões orais associadas
com a infecção por VIH podem ser infeções por Herpes Vírus Simplex (HSV),
herpes zóster, ulcerações aftosas recorrentes, eritema linear da gengiva, periodontite
ulcerativa necrosante, gengivite ulcerativa necrosante e estomatite necrosante.
d)
Anfetaminas - Metanfetaminas
O uso crónico de metanfetaminas pode causar
xerostomia, cáries rampantes, mau hálito e, devido aos elevados níveis de “energia”
e atividade neuromuscular, os dentes “rangerem” (bruxismo) entre si com muita
força, desgastando-se e provocando trismus
musculares por “apertamento” da mandíbula.
A presença de xerostomia aumenta
significativamente o risco de cárie, erosão do esmalte e doenças periodontais. Todos
estes factores, acoplados a uma franca negligência na higiene oral, consumos
elevados de hidratos de carbono e regurgitação gastrointestinal, podem causar a
“meth mouth” (boca de metanfetamina),
entidade clinica característica deste tipo de consumidores.
Após esta breve e resumida exposição, fica patente
o papel que as doenças orais representam em matéria de drogas e dependências. Com
efeito, conhecidos os factores de risco destas doenças, rapidamente se pode
concluir que grande parte destas podem ser prevenidas e, ao fazê-lo, evitar-se
outras doenças não-comunicáveis, tal como preconiza a Organização Mundial de
Saúde (OMS). Simultaneamente, tem-se determinado, de forma empírica, que
a procura de planos de reabilitação oral é uma necessidade altamente
requisitada por grande parte desta população e parecem não existir dúvidas
acerca do papel que a saúde oral pode representar na reconstrução da imagem
corporal e, consequentemente, da identidade deteriorada pelo estigma da
dependência de substâncias psicoativas.
Nesse intuito e visto que a importância da saúde oral é reconhecida, nos dias de hoje, como
fundamental para a saúde e bem estar de todos os indivíduos, justifica-se, cada
vez mais, que se aprofundem as ações de formação e as pesquisas que
relacionem as doenças orais, a dependência de drogas e os seus efeitos, tanto
do ponto de vista médico como social. O
conhecimento destas relações pode revelar-se de uma enorme importância para a
elaboração de estratégias eficazes que contribuam para a dissuasão do mau uso de
determinadas substâncias, para a reconstrução de diferentes perspetivas de vida
e que ajudem a trilhar novos rumos.
É longo o caminho e muito o trabalho por desenvolver. Tal como a droga não é um problema dos outros, o sorriso dos
outros deve ser também uma responsabilidade nossa. Ou pelo menos minha.
Conheça a página do Congresso Nacional de
Adictologia e o respectivo programa aqui:
http://www.adictologia.com/congresso-nacional-de-adictologia/
Conheça a página do Projeto Medicina Oral e
Dependências no Facebook aqui:
Medicina Oral e Dependências
Pode assistir ao programa Causas Públicas sobre A importância da boca. Lesões associadas ao consumo oral de drogas aqui:
http://www.rtp.pt/play/p380/e123257/causas-publicas